Tu És o Glorioso - 24

Em 1913, vitória sobre o Flamengo no primeiro jogo em General Severiano

Atualizado em 28-07-2015 às 18h00

Por Auriel de Almeida - Historiador

Quando disputou o primeiro Campeonato Carioca, em 1906, o Botafogo já havia transferido sua sede social do chalé onde fora fundado, no Largo dos Leões, para uma casa na Rua São Clemente 182. Seu campo de futebol ficava na Rua Real Grandeza, número 11, campo este alugado e que, não aprovado para uso nos campeonatos de 1906 e 1907, só servia para treino.

Em 1908 o Botafogo alugou um terreno bem melhor, situado na Rua Voluntários da Pátria, número 209, onde montou sede, campo e arquibancadas de madeira. O novo ground foi aprovado para uso no campeonato do mesmo ano, e inaugurado oficialmente em 31 de maio, na vitória do Botafogo sobre o Riachuelo por 5 a 0. Dois anos depois, seria palco do histórico título carioca de 1910.

Se em 1910 o Glorioso viveu uma grande alegria no campo da Voluntários da Pátria, em 1911 foi a vez de uma grande tristeza. E, ironicamente, com um mesmo personagem principal: Abelardo de Lamare, artilheiro da decisão do ano anterior. Tudo começou na terceira rodada do Campeonato Carioca daquele ano. O Botafogo era favoritíssimo para a conquista do título, tendo já atropelado o Rio Cricket (3 a 0) e o Paysandu (5 a 0), e seu próximo compromisso era o America, então um time emergente.

O jogo contra os rubros não foi fácil. Os americanos conseguiram neutralizar o forte ataque alvinegro, com extraordinária atuação do goalkeeper Mendonça, e ao mesmo tempo atacar com seriedade, inclusive marcando um gol sobre o Botafogo no primeiro tempo. Na segunda etapa a partida tornou-se mais violenta, com os botafoguenses atacando com mais agressividade e o America segurando o placar de todas as formas – incluindo aí os pontapés. Pouco após o gol de empate do Botafogo, marcado por Abelardo, o tempo fechou: após uma falta dura de Gabriel sobre Flávio Ramos, Abelardo de Lamare reclamou da violência e afirmou que, na próxima, os botafoguenses revidariam. Gabriel respondeu de forma atravessada e Abelardo aplicou-lhe um bofetão. Os jogadores dos dois times passaram a trocar tapas, e a torcida na Voluntários da Pátria invadiu o campo, em um quebra-pau vergonhoso.

Talvez pela confusão ter ocorrido em campo alvinegro, a Liga Metropolitana foi mais rigorosa com o Botafogo, suspendendo Abelardo de Lamare por um ano e seu irmão Adhemaro por seis meses. Gabriel, o punido do lado do America, foi suspenso por apenas 30 dias. E o Alvinegro, considerando-se injustiçado, tomou uma decisão dramática: abandonou o campeonato que liderava e desligou-se da liga. O fato foi motivo de lamento na mídia esportiva, pois sem o esperado confronto entre Botafogo e Fluminense a competição perdeu o interesse.

A atitude, considerada precipitada por alguns e altiva por outros, teve consequências quase fatais quando, em outubro, o Glorioso recebeu uma notícia inesperada: o proprietário do terreno da Voluntários da Pátria resolveu vender a área para a prefeitura, e o Botafogo estava despejado. Sem sede, sem campo, e ainda por cima sem participar de nenhuma liga, o clube viu seu quadro social encolher rapidamente – graças aos que mudaram de clube, os que cancelaram seus títulos, ou os que simplesmente pararam de pagar e sumiram, o Alvinegro chegou a ficar com apenas 12 sócios quites, funcionando precariamente na casa de um deles, Herman Palmeira, à Rua Barão de Icaraí, número 28, Flamengo.

Felizmente os jogadores permaneceram fiéis ao clube. O Botafogo tinha, ao menos, um time. E com isso foi convidado pelo Cattete para fundar uma nova liga: a Associação de Foot-Ball do Rio de Janeiro, que organizaria o seu campeonato carioca de futebol em 1912.

No ano em que dois torneios foram disputados na cidade, os sócios alvinegros Alfredo Couto, Paulo Martins, Luís Rebelo, Eduardo Alexander e Antônio Carlos da Motta Júnior assistiam a um jogo do Fluminense, pela liga rival, quando foram abordados por torcedores do Tricolor. Os “simpáticos” adversários gritavam, com deboche, que o Botafogo estava morto, acabado e só “faltava enterrar o defunto”, apostando entre si se o clube alvinegro fecharia as portas no próximo mês ou se aguentaria mais um pouquinho. Os botafoguenses não reagiram, pois sabiam que a situação era vergonhosa. Mas a pilhéria tricolor mexeu com os brios alvinegros e no dia seguinte os sócios foram à busca de um novo terreno, decididos que pagariam o que fosse necessário.

Após vagar entre Copacabana e Botafogo, os sócios finalmente acharam o lugar ideal: um terreno na Rua General Severiano, pertencente ao Ministério da Justiça, que não planejava utilizá-lo e aceitou alugá-lo a preço de banana. Diga-se de passagem, foi fundamental o apoio de Rivadávia Correia, ministro da Justiça e por felicidade um torcedor do Botafogo. Tão logo foi assinado o contrato, em 23 de junho de 1912, o terreno entrou em obras.

Em 1913 a situação entre os principais times da cidade já estava pacificada, graças à intermediação do Flamengo (que estreara no futebol no ano anterior). Com muita diplomacia, e contando com o apoio da imprensa, o Rubro-Negro fez a ponte entre o Botafogo e a Liga Metropolitana, que voltaram a conversar. E após uma assembleia entre os clubes foi decidida a fusão das ligas rivais.

Forte e renovado, o Glorioso estava de volta aos gramados contra grandes adversários. E estrearia o seu novo campo de futebol contra o Flamengo, na primeira partida entre os futuros grandes antagonistas.


Um dos raros registros do jogo: vitória do Botafogo


O Jogo

Quem conhece a rivalidade atual entre alvinegros e rubro-negros ficaria surpreso com tamanha troca de gentilezas entre as equipes no jogo inaugural do grande clássico. Os esforços dos dirigentes do Flamengo pela pacificação do futebol no Rio, cuja bandeira era a presença indispensável do Botafogo em um campeonato carioca de respeito, resultaram em um relacionamento muito amistoso entre as duas diretorias, que duraria por um bom tempo.

A estreia do Glorioso no seu novo campo era também a primeira partida do clube na temporada, aguardadíssima pelo público. Na semana do jogo as arquibancadas ainda estavam sendo concluídas, aumentando ainda mais a ansiedade pelo momento, mas em 13 de maio de 1913, dia do grande confronto entre Botafogo e Flamengo, o campo da Rua General Severiano já estava pronto. O jogo só começaria às quatro da tarde, mas às três horas as recém-construídas arquibancadas já estavam repletas de gente, que somadas aos que cercavam o campo garantiam uma assistência superior a 3 mil espectadores. O jornal “Correio da Manhã” destacou o grande público, afirmando que “desde 1910 não tínhamos assistido a um encontro tão sensacional e tão concorrido”, em mais uma prova de que os flamenguistas estavam certos: um campeonato sem o Botafogo era sinônimo de fracasso.

Antes de a partida começar os jogadores do Flamengo, em grupo, dirigiram-se à plateia e cantaram o seu hino de guerra, para em seguida pedir hurrahs e palmas para a entrada do Glorioso, pedido calorosamente acatado pelas duas torcidas. E a multidão ainda fazia barulho quando os capitães das equipes sortearam, na moeda, a saída do jogo, vencida pelo Botafogo. E nesse clima de esportividade a partida foi iniciada pelo juiz Mário Pernambuco, sócio do Fluminense, às quatro horas da tarde, com pontapé inicial de Charles Bleck, presidente do Clube Naval de Lisboa e convidado do Alvinegro.

O jogo foi elogiadíssimo pela mídia como um dos mais belos espetáculos já vistos em gramados cariocas – equilibrado, com bonitos lances nos dois lados, times procurando sempre o gol, defesas firmes e acima de tudo disputado de forma limpa, como esperado em uma partida entre equipes amigas.

Já no primeiro lance o Flamengo chegou com perigo, quando Gallo roubou uma bola de Villaça, na saída, e tocou para Alberto Borgerth arriscar da intermediária, em um balaço que passou por cima do gol, para sorte do desprevenido goleiro Álvaro Werneck, ainda mal-posicionado.

O Botafogo respondeu com Abelardo de Lamare, que também do meio de campo atirou uma bomba para o gol, com mais direção, que o goleiro Cazuza conseguiu segurar. Na sequência da jogada o Flamengo, com bons passes, conseguiu chegar na área alvinegra e Joca chutou a gol, impedido por Rolando de Lamare, que desviou para escanteio. Na cobrança do córner foi a vez de Pino salvar o Glorioso, afastando o perigo de cabeça.

A bola continuou com os rubro-negros, que tentavam achar algum espaço na bem-postada defesa botafoguense, e quando conseguiram uma enfiada perigosa para Del Nero na área a jogada foi interrompida, por impedimento. Na cobrança do tiro livre, Edgard Pullen fez um lançamento longo para Lauro Sodré, que correu até a linha de fundo e cruzou para Facchine cabecear com força. Cazuza salvou, espalmando para frente, e no rebote Abelardo tocou para o gol. Caído, Cazuza conseguiu salvar a bola com a cabeça, e o zagueiro Nery salvou a pátria rubro-negra com um chutão para frente.

A partida seguiu equilibrada, com lances perigosos de lado a lado, como outra boa cabeçada de Facchine, também espalmada por Cazuza, ou os chutes venenosos de Del Nero e Borgerth de fora da área, salvos por Álvaro. Mas a sorte sorriria para o Botafogo aos 26 minutos, quando Lauro cobrou bem o escanteio, Facchine cabeceou para nova espalmada de Cazuza, que conseguiu espalmar também o rebote de Abelardo, mas não o chute de Mimi Sodré, que ficou com a bola após um breve bate-rebate na área rubro-negra: 1 a 0 para o Glorioso, e salva de palmas das duas torcidas, empolgadas com o belo jogo, longe de estar definido.

Recomeçada a partida, a luta seguiu “titânica”, conforme a definição de um jornal, com maior domínio do Flamengo. Os rubro-negros poderiam ter empatado quando Lawrence cobrou uma falta com categoria, e Álvaro espalmou, ou quando o mesmo Lawrence conseguiu tirar o goleiro da jogada, obrigando Rolando de Lamare a salvar o gol com a cabeça, ou ainda quando Álvaro rebateu um chute de Joca, e na sobra Borgerth, com o goleiro adversário ainda se levantando, tentou encobri-lo e acertou caprichosamente a trave. Mas com um pouco de sorte e muita competência, a zaga alvinegra garantiu que o Flamengo não conseguisse nenhum ponto até o fim do primeiro tempo.

Na segunda etapa o Botafogo voltou a equilibrar as ações, e foram muitas as chances de gol das duas equipes. Mimi Sodré, habilidoso, conseguiu se livrar de dois adversários, driblou belamente Píndaro na entrada da área, mas, desequilibrado, perdeu o tempo do chute e desperdiçou uma chance clara de ampliar. Em seguida o flamenguista Borgerth, mais uma vez, chutou com força de fora da área e Álvaro defendeu para escanteio. Na cobrança Joca quase marcou, mas o goleiro botafoguense conseguiu segurar.

Os dois times seguiram criando muitas oportunidades de gol, insistindo em jogadas parecidas. O Flamengo tentava vazar o gol adversário com os fortes chutes à distância de Borgerth, Joca e Bahiano, e eventualmente com lançamentos para Del Nero, quase sempre impedido. Já o Glorioso preferia as jogadas de linha de fundo, geralmente com Lauro, que, defendidas, geravam escanteios perigosos para o gol de Cazuza, que muito suou para defender as cabeçadas de Facchine. Mas mesmo criando tantas chances, nenhuma equipe conseguiu marcar outro tento. A partida histórica, a primeira disputada entre Botafogo e Flamengo, a primeira do Alvinegro em sua famosa morada, terminou mesmo com o placar mínimo favorável ao Glorioso.

E após o jogo, coroando o ambiente amistoso entre os times, jogadores alvinegros e rubro-negros confraternizaram com uma boa taça de champagne. Oferecida, é claro, pelo Botafogo, um bom anfitrião.

E uma curiosidade: Alberto Borgerth, líder da famosa dissidência que tirou nove jogadores do Fluminense e fundou o futebol no Flamengo, parecia nutrir admiração pelo Botafogo. Além de ser o principal articulador do retorno do Glorioso à Liga em 1913, Borgerth desejava inicialmente levar os dissidentes tricolores para as hostes alvinegras, em 1911. Como na ocasião o Bota estava fora da liga a maioria votou contra, e só então o Flamengo entrou em pauta. De certa forma, o Alvinegro é “culpado” pela existência do futebol rubro-negro...
 
== Ficha técnica ==

Terça-feira, 13 de maio de 1913
Botafogo 1 x 0 Flamengo – Local: Campo da Rua General Severiano
Campeonato Carioca – 1º Turno

Botafogo: Álvaro Werneck, Edgard Dutra e Edgard Pullen; Pino, Rolando de Lamare e Juca Couto; Villaça, Abelardo de Lamare, Facchine, Mimi Sodré e Lauro Sodré. Técnico: Ground Committeé.

Flamengo: Cazuza, Píndaro e Nery; Gallo, Amarante ‘Zalacain’ e Lawrence; Orlando ‘Bahiano’, Alberto Borgerth, Joca Figueira, Del Nero e Raul de Carvalho. Técnico: Ground Committeé.

Árbitro: Mário Pernambuco, sócio do Fluminense.
Gol: Mimi Sodré 26/1ºT.

Público: 3.000 (aproximadamente)

Por Auriel de Almeida - Historiador

Quando disputou o primeiro Campeonato Carioca, em 1906, o Botafogo já havia transferido sua sede social do chalé onde fora fundado, no Largo dos Leões, para uma casa na Rua São Clemente 182. Seu campo de futebol ficava na Rua Real Grandeza, número 11, campo este alugado e que, não aprovado para uso nos campeonatos de 1906 e 1907, só servia para treino.

Em 1908 o Botafogo alugou um terreno bem melhor, situado na Rua Voluntários da Pátria, número 209, onde montou sede, campo e arquibancadas de madeira. O novo ground foi aprovado para uso no campeonato do mesmo ano, e inaugurado oficialmente em 31 de maio, na vitória do Botafogo sobre o Riachuelo por 5 a 0. Dois anos depois, seria palco do histórico título carioca de 1910.

Se em 1910 o Glorioso viveu uma grande alegria no campo da Voluntários da Pátria, em 1911 foi a vez de uma grande tristeza. E, ironicamente, com um mesmo personagem principal: Abelardo de Lamare, artilheiro da decisão do ano anterior. Tudo começou na terceira rodada do Campeonato Carioca daquele ano. O Botafogo era favoritíssimo para a conquista do título, tendo já atropelado o Rio Cricket (3 a 0) e o Paysandu (5 a 0), e seu próximo compromisso era o America, então um time emergente.

O jogo contra os rubros não foi fácil. Os americanos conseguiram neutralizar o forte ataque alvinegro, com extraordinária atuação do goalkeeper Mendonça, e ao mesmo tempo atacar com seriedade, inclusive marcando um gol sobre o Botafogo no primeiro tempo. Na segunda etapa a partida tornou-se mais violenta, com os botafoguenses atacando com mais agressividade e o America segurando o placar de todas as formas – incluindo aí os pontapés. Pouco após o gol de empate do Botafogo, marcado por Abelardo, o tempo fechou: após uma falta dura de Gabriel sobre Flávio Ramos, Abelardo de Lamare reclamou da violência e afirmou que, na próxima, os botafoguenses revidariam. Gabriel respondeu de forma atravessada e Abelardo aplicou-lhe um bofetão. Os jogadores dos dois times passaram a trocar tapas, e a torcida na Voluntários da Pátria invadiu o campo, em um quebra-pau vergonhoso.

Talvez pela confusão ter ocorrido em campo alvinegro, a Liga Metropolitana foi mais rigorosa com o Botafogo, suspendendo Abelardo de Lamare por um ano e seu irmão Adhemaro por seis meses. Gabriel, o punido do lado do America, foi suspenso por apenas 30 dias. E o Alvinegro, considerando-se injustiçado, tomou uma decisão dramática: abandonou o campeonato que liderava e desligou-se da liga. O fato foi motivo de lamento na mídia esportiva, pois sem o esperado confronto entre Botafogo e Fluminense a competição perdeu o interesse.

A atitude, considerada precipitada por alguns e altiva por outros, teve consequências quase fatais quando, em outubro, o Glorioso recebeu uma notícia inesperada: o proprietário do terreno da Voluntários da Pátria resolveu vender a área para a prefeitura, e o Botafogo estava despejado. Sem sede, sem campo, e ainda por cima sem participar de nenhuma liga, o clube viu seu quadro social encolher rapidamente – graças aos que mudaram de clube, os que cancelaram seus títulos, ou os que simplesmente pararam de pagar e sumiram, o Alvinegro chegou a ficar com apenas 12 sócios quites, funcionando precariamente na casa de um deles, Herman Palmeira, à Rua Barão de Icaraí, número 28, Flamengo.

Felizmente os jogadores permaneceram fiéis ao clube. O Botafogo tinha, ao menos, um time. E com isso foi convidado pelo Cattete para fundar uma nova liga: a Associação de Foot-Ball do Rio de Janeiro, que organizaria o seu campeonato carioca de futebol em 1912.

No ano em que dois torneios foram disputados na cidade, os sócios alvinegros Alfredo Couto, Paulo Martins, Luís Rebelo, Eduardo Alexander e Antônio Carlos da Motta Júnior assistiam a um jogo do Fluminense, pela liga rival, quando foram abordados por torcedores do Tricolor. Os “simpáticos” adversários gritavam, com deboche, que o Botafogo estava morto, acabado e só “faltava enterrar o defunto”, apostando entre si se o clube alvinegro fecharia as portas no próximo mês ou se aguentaria mais um pouquinho. Os botafoguenses não reagiram, pois sabiam que a situação era vergonhosa. Mas a pilhéria tricolor mexeu com os brios alvinegros e no dia seguinte os sócios foram à busca de um novo terreno, decididos que pagariam o que fosse necessário.

Após vagar entre Copacabana e Botafogo, os sócios finalmente acharam o lugar ideal: um terreno na Rua General Severiano, pertencente ao Ministério da Justiça, que não planejava utilizá-lo e aceitou alugá-lo a preço de banana. Diga-se de passagem, foi fundamental o apoio de Rivadávia Correia, ministro da Justiça e por felicidade um torcedor do Botafogo. Tão logo foi assinado o contrato, em 23 de junho de 1912, o terreno entrou em obras.

Em 1913 a situação entre os principais times da cidade já estava pacificada, graças à intermediação do Flamengo (que estreara no futebol no ano anterior). Com muita diplomacia, e contando com o apoio da imprensa, o Rubro-Negro fez a ponte entre o Botafogo e a Liga Metropolitana, que voltaram a conversar. E após uma assembleia entre os clubes foi decidida a fusão das ligas rivais.

Forte e renovado, o Glorioso estava de volta aos gramados contra grandes adversários. E estrearia o seu novo campo de futebol contra o Flamengo, na primeira partida entre os futuros grandes antagonistas.


Um dos raros registros do jogo: vitória do Botafogo


O Jogo

Quem conhece a rivalidade atual entre alvinegros e rubro-negros ficaria surpreso com tamanha troca de gentilezas entre as equipes no jogo inaugural do grande clássico. Os esforços dos dirigentes do Flamengo pela pacificação do futebol no Rio, cuja bandeira era a presença indispensável do Botafogo em um campeonato carioca de respeito, resultaram em um relacionamento muito amistoso entre as duas diretorias, que duraria por um bom tempo.

A estreia do Glorioso no seu novo campo era também a primeira partida do clube na temporada, aguardadíssima pelo público. Na semana do jogo as arquibancadas ainda estavam sendo concluídas, aumentando ainda mais a ansiedade pelo momento, mas em 13 de maio de 1913, dia do grande confronto entre Botafogo e Flamengo, o campo da Rua General Severiano já estava pronto. O jogo só começaria às quatro da tarde, mas às três horas as recém-construídas arquibancadas já estavam repletas de gente, que somadas aos que cercavam o campo garantiam uma assistência superior a 3 mil espectadores. O jornal “Correio da Manhã” destacou o grande público, afirmando que “desde 1910 não tínhamos assistido a um encontro tão sensacional e tão concorrido”, em mais uma prova de que os flamenguistas estavam certos: um campeonato sem o Botafogo era sinônimo de fracasso.

Antes de a partida começar os jogadores do Flamengo, em grupo, dirigiram-se à plateia e cantaram o seu hino de guerra, para em seguida pedir hurrahs e palmas para a entrada do Glorioso, pedido calorosamente acatado pelas duas torcidas. E a multidão ainda fazia barulho quando os capitães das equipes sortearam, na moeda, a saída do jogo, vencida pelo Botafogo. E nesse clima de esportividade a partida foi iniciada pelo juiz Mário Pernambuco, sócio do Fluminense, às quatro horas da tarde, com pontapé inicial de Charles Bleck, presidente do Clube Naval de Lisboa e convidado do Alvinegro.

O jogo foi elogiadíssimo pela mídia como um dos mais belos espetáculos já vistos em gramados cariocas – equilibrado, com bonitos lances nos dois lados, times procurando sempre o gol, defesas firmes e acima de tudo disputado de forma limpa, como esperado em uma partida entre equipes amigas.

Já no primeiro lance o Flamengo chegou com perigo, quando Gallo roubou uma bola de Villaça, na saída, e tocou para Alberto Borgerth arriscar da intermediária, em um balaço que passou por cima do gol, para sorte do desprevenido goleiro Álvaro Werneck, ainda mal-posicionado.

O Botafogo respondeu com Abelardo de Lamare, que também do meio de campo atirou uma bomba para o gol, com mais direção, que o goleiro Cazuza conseguiu segurar. Na sequência da jogada o Flamengo, com bons passes, conseguiu chegar na área alvinegra e Joca chutou a gol, impedido por Rolando de Lamare, que desviou para escanteio. Na cobrança do córner foi a vez de Pino salvar o Glorioso, afastando o perigo de cabeça.

A bola continuou com os rubro-negros, que tentavam achar algum espaço na bem-postada defesa botafoguense, e quando conseguiram uma enfiada perigosa para Del Nero na área a jogada foi interrompida, por impedimento. Na cobrança do tiro livre, Edgard Pullen fez um lançamento longo para Lauro Sodré, que correu até a linha de fundo e cruzou para Facchine cabecear com força. Cazuza salvou, espalmando para frente, e no rebote Abelardo tocou para o gol. Caído, Cazuza conseguiu salvar a bola com a cabeça, e o zagueiro Nery salvou a pátria rubro-negra com um chutão para frente.

A partida seguiu equilibrada, com lances perigosos de lado a lado, como outra boa cabeçada de Facchine, também espalmada por Cazuza, ou os chutes venenosos de Del Nero e Borgerth de fora da área, salvos por Álvaro. Mas a sorte sorriria para o Botafogo aos 26 minutos, quando Lauro cobrou bem o escanteio, Facchine cabeceou para nova espalmada de Cazuza, que conseguiu espalmar também o rebote de Abelardo, mas não o chute de Mimi Sodré, que ficou com a bola após um breve bate-rebate na área rubro-negra: 1 a 0 para o Glorioso, e salva de palmas das duas torcidas, empolgadas com o belo jogo, longe de estar definido.

Recomeçada a partida, a luta seguiu “titânica”, conforme a definição de um jornal, com maior domínio do Flamengo. Os rubro-negros poderiam ter empatado quando Lawrence cobrou uma falta com categoria, e Álvaro espalmou, ou quando o mesmo Lawrence conseguiu tirar o goleiro da jogada, obrigando Rolando de Lamare a salvar o gol com a cabeça, ou ainda quando Álvaro rebateu um chute de Joca, e na sobra Borgerth, com o goleiro adversário ainda se levantando, tentou encobri-lo e acertou caprichosamente a trave. Mas com um pouco de sorte e muita competência, a zaga alvinegra garantiu que o Flamengo não conseguisse nenhum ponto até o fim do primeiro tempo.

Na segunda etapa o Botafogo voltou a equilibrar as ações, e foram muitas as chances de gol das duas equipes. Mimi Sodré, habilidoso, conseguiu se livrar de dois adversários, driblou belamente Píndaro na entrada da área, mas, desequilibrado, perdeu o tempo do chute e desperdiçou uma chance clara de ampliar. Em seguida o flamenguista Borgerth, mais uma vez, chutou com força de fora da área e Álvaro defendeu para escanteio. Na cobrança Joca quase marcou, mas o goleiro botafoguense conseguiu segurar.

Os dois times seguiram criando muitas oportunidades de gol, insistindo em jogadas parecidas. O Flamengo tentava vazar o gol adversário com os fortes chutes à distância de Borgerth, Joca e Bahiano, e eventualmente com lançamentos para Del Nero, quase sempre impedido. Já o Glorioso preferia as jogadas de linha de fundo, geralmente com Lauro, que, defendidas, geravam escanteios perigosos para o gol de Cazuza, que muito suou para defender as cabeçadas de Facchine. Mas mesmo criando tantas chances, nenhuma equipe conseguiu marcar outro tento. A partida histórica, a primeira disputada entre Botafogo e Flamengo, a primeira do Alvinegro em sua famosa morada, terminou mesmo com o placar mínimo favorável ao Glorioso.

E após o jogo, coroando o ambiente amistoso entre os times, jogadores alvinegros e rubro-negros confraternizaram com uma boa taça de champagne. Oferecida, é claro, pelo Botafogo, um bom anfitrião.

E uma curiosidade: Alberto Borgerth, líder da famosa dissidência que tirou nove jogadores do Fluminense e fundou o futebol no Flamengo, parecia nutrir admiração pelo Botafogo. Além de ser o principal articulador do retorno do Glorioso à Liga em 1913, Borgerth desejava inicialmente levar os dissidentes tricolores para as hostes alvinegras, em 1911. Como na ocasião o Bota estava fora da liga a maioria votou contra, e só então o Flamengo entrou em pauta. De certa forma, o Alvinegro é “culpado” pela existência do futebol rubro-negro...
 
== Ficha técnica ==

Terça-feira, 13 de maio de 1913
Botafogo 1 x 0 Flamengo – Local: Campo da Rua General Severiano
Campeonato Carioca – 1º Turno

Botafogo: Álvaro Werneck, Edgard Dutra e Edgard Pullen; Pino, Rolando de Lamare e Juca Couto; Villaça, Abelardo de Lamare, Facchine, Mimi Sodré e Lauro Sodré. Técnico: Ground Committeé.

Flamengo: Cazuza, Píndaro e Nery; Gallo, Amarante ‘Zalacain’ e Lawrence; Orlando ‘Bahiano’, Alberto Borgerth, Joca Figueira, Del Nero e Raul de Carvalho. Técnico: Ground Committeé.

Árbitro: Mário Pernambuco, sócio do Fluminense.
Gol: Mimi Sodré 26/1ºT.

Público: 3.000 (aproximadamente)