Tu És o Glorioso - 23

Em 1948, Fogão conquista título estadual com cachorrinho talismã

Atualizado em 21-07-2015 às 20h00

Por Auriel de Almeida - Historiador

O Campeonato Carioca de 1948 é, sem dúvida, o mais folclórico da história. Uma estreia desastrosa, um cachorro da sorte, um presidente cheio de superstições, a caminhada para a recuperação e uma final muito discutida pelos rivais são apenas alguns dos elementos daquela edição, dignos de um bom roteiro de cinema. E o campeão, óbvio, foi o Botafogo, o clube mais novelesco do Brasil.

A temporada começou sombria para o Alvinegro, que vinha de quatro vice-campeonatos seguidos, e as atitudes de Heleno de Freitas ajudavam a carregar o ambiente no clube. Carlito Rocha, o novo presidente, quis promover uma mudança radical e surpreendeu: negociou o ídolo, vendido para o Boca Juniors por 600 mil cruzeiros. A decisão não foi fácil. Heleno era amado pela torcida, e poucos botafoguenses eram tão apaixonados quanto o próprio Carlito. Mas o relatório feito pelo técnico Ondino Viera, de saída, era contundente: com Heleno no clube, o Botafogo não seria campeão.

Os torcedores não gostaram nada da decisão, e menos satisfeitos ficaram quando Pirillo foi contratado para o seu lugar – o atacante já tinha 32 anos e era muito identificado com o Flamengo, onde jogava desde o começo da década. E quando Zezé Moreira, ex-jogador alvinegro e até então apenas preparador físico do clube, foi efetivado como treinador em substituição a Ondino Viera, a desconfiança aumentou.

A estreia do Botafogo no campeonato, em 11 de julho, pareceu confirmar as expectativas negativas da torcida: derrota por 4 a 0 para o São Cristóvão, em casa. Os torcedores, indignados, pediam mais um gol do rival e clamavam pelo nome de Heleno, testemunha da vergonha do camarote. Mas se a maioria dos botafoguenses já deu a temporada por perdida naquela partida, Carlito Rocha não se abateu: prometeu que o Glorioso não voltaria a perder, e levaria a taça.

A conquista da confiança foi gradual. No segundo jogo, uma boa vitória sobre o Canto do Rio por 4 a 2. Na terceira partida uma goleada de 6 a 0 sobre o Madureira, e os botafoguenses começavam a acreditar no time. E foi no jogo preliminar daquele dia, disputado pelos aspirantes, surgiu o que seria uma das "estrelas" do título. Após a vitória botafoguense, por 10 a 2, um vira-lata invadiu o campo, como se comemorasse o feito. Era Biriba, animal de estimação do eterno zagueiro reserva Macaé. Encantado pelo bicho, que além de tudo era preto e branco, Carlito Rocha decidiu adotá-lo como talismã – uma das muitas excentricidades do presidente na temporada.

O cachorrinho “deu” sorte ao time principal logo no jogo seguinte: o Botafogo goleou o Fluminense por 5 a 2, e passou a ser considerado candidato ao título. E jogo após jogo o Glorioso entrava em campo com Biriba liderando a fila, como se fosse um jogador, e em todos eles saía vitorioso. Se no início todos achavam o ritual ridículo, logo os rivais mostraram-se preocupados com o talismã – ainda mais quando Macaé, seguindo ordens de Carlito, passou a soltar o cão em campo sempre que o Botafogo estava atrás no placar. Incrivelmente a loucura dava resultado, e os alvinegros conseguiam a virada.

O America, antes da derrota por 1 a 0 na penúltima rodada, foi o primeiro a enviar um protesto à Federação contra Biriba. E o Vasco, líder da competição em todas as rodadas e adversário do Alvinegro no último jogo do primeiro turno, foi além: vetou o ingresso do cãozinho em São Januário. Mas Carlito Rocha peitou a proibição e entrou no estádio com Biriba nos braços. O Glorioso venceu mais uma, por 2 a 1, e passou o Cruzmaltino na tabela por um ponto, assumindo a liderança na última rodada do turno.

A perseguição no segundo turno foi árdua. O Botafogo tropeçou na quarta rodada, ao empatar com o Fluminense, e a liderança do campeonato passou a ser dividida com os vascaínos. Os dois times venceram todas as demais partidas, e o confronto entre ambos, no último jogo da competição, tornou-se uma final. Quem vencesse seria o campeão carioca, e em caso de empate o título seria decidido em um jogo-extra.


Carlito Rocha em foto famosa com Biriba


O JOGO

O estádio de General Severiano estava lotadíssimo, e a renda bateu recorde de então: 570 mil cruzeiros. Botafoguenses e vascaínos confiavam na conquista do título – os primeiros com a fé inabalável no destino, que parecia do lado do Glorioso, e os segundos na qualidade do “Expresso da Vitória”, simplesmente o maior esquadrão formado pelo Cruzmaltino em toda a história e recentemente o primeiro Campeão Sul-Americano de Clubes.

Mas as esperanças vascaínas se esvaíram logo no primeiro minuto. Pirillo, que fazia um excelente campeonato, tomou a bola de Danilo na intermediária, avançou pela esquerda e tocou para Braguinha, que driblou Augusto e entrou na área. O goleiro Barbosa foi para cima, tentando abafar um possível chute, mas seu adversário foi mais rápido e cruzou para Paraguaio, livre, empurrar de testa para as redes: 1 a 0 para o Glorioso. O Botafogo nunca mais abandonou a dianteira no placar, ou mesmo perdeu o controle do jogo. A taça estava na mão.

O Vasco ainda não tinha conseguido criar uma oportunidade clara de gol quando o Alvinegro ampliou, já aos 40 minutos, por intermédio de Braguinha. O atacante conseguiu ficar com a bola após confusão na pequena área, e chutou para as redes: 2 a 0 para o time da casa, e a torcida já comemorava o título.

O segundo tempo trouxe um pouco de preocupação, quando o zagueiro Gérson se chocou com Dimas e levou a pior, no primeiro minuto. Desorientado, o atleta acordou perguntando “que jogo era aquele” e não teve condições de voltar. Sem substituições, o Botafogo ficou mesmo com dez em campo, mas não fez tanta diferença. Aos quatro minutos Braguinha viu uma brecha entre Wilson e Eli e enfiou a bola para Octávio, que ganhou dos rivais na corrida, entrou na área e escolheu um canto para marcar: 3 a 0, selando a vitória.

Os vascaínos só conseguiram descontar através de um gol contra de Ávila, que tentou cortar um cruzamento pouco perigoso e acabou cabeceando para o próprio patrimônio. E não passou disso. Seguro na defesa, o Bota administrou o jogo até o apito final.

A festa alvinegra pelo título foi intensa, na medida do que foi a campanha memorável. Os jogadores, entre eles um jovem Nílton Santos em seu primeiro ano profissional, cobriram Carlito Rocha, que de olhos marejados abraçava e beijava Biriba sem parar – o dirigente até mesmo passou mal de emoção, e teve que ser atendido. Macaé, eufórico, havia acertado o placar em entrevista à rádio, e gritava para quem quisesse ouvir: “Eu disse! Eu disse!”. E a torcida, à beira da loucura, chegou a arrombar o vestiário e roubar as camisas dos jogadores.

Do lado vascaíno, conformidade com o placar – os atletas admitiam o mau desempenho, e parabenizavam o campeão. Mas a serenidade durou pouco, pois dentro de alguns dias surgiriam as famosas justificativas conspiratórias para a derrota, nenhuma registrada pela imprensa.

Biriba, o mascote de carne e osso do Botafogo, seguiu entrando em campo com a equipe até 1950, quando os clássicos passaram a ser disputados no Maracanã. O cão chegou a “participar” de alguns jogos no estádio, mas o futebol já era sério demais para certas excentricidades. Biriba seguiu querido, visitava o clube com frequência, e ao contrário do que alguns imaginam não morreu abandonado. Com problemas cardiácos, faleceu aos 12 anos de idade, no apartamento de seu dono Macaé, a 10 de agosto de 1958. Até hoje o animal é um dos símbolos do clube, e motivo do apelido “cachorrada” dado pelos rivais.

== Ficha técnica ==

Domingo, 12 de dezembro de 1948
Botafogo 3 x 1 Vasco da Gama – Local: Estádio de General Severiano
Campeonato Carioca – 2º Turno

Botafogo: Osvaldo Baliza, Gérson e Nílton Santos; Rubinho, Ávila e Juvenal; Paraguaio, Geninho, Pirillo, Octávio e Braguinha. Técnico: Zezé Moreira.

Vasco da Gama: Barbosa, Augusto e Wilson; Ely, Danilo e Jorge; Friaça, Ademir Menezes, Dimas, Ipojucan e Chico. Técnico: Flávio Costa.

Árbitro: Mário Gonçalves Vianna (DF).
Gols: Paraguaio aos 1/1ºT e Braguinha aos 40/1ºT; Octávio aos 4/2ºT e Ávila (contra) aos 18/2ºT.

Público: 18.321 pagantes, aproximadamente 20.000 presentes

Por Auriel de Almeida - Historiador

O Campeonato Carioca de 1948 é, sem dúvida, o mais folclórico da história. Uma estreia desastrosa, um cachorro da sorte, um presidente cheio de superstições, a caminhada para a recuperação e uma final muito discutida pelos rivais são apenas alguns dos elementos daquela edição, dignos de um bom roteiro de cinema. E o campeão, óbvio, foi o Botafogo, o clube mais novelesco do Brasil.

A temporada começou sombria para o Alvinegro, que vinha de quatro vice-campeonatos seguidos, e as atitudes de Heleno de Freitas ajudavam a carregar o ambiente no clube. Carlito Rocha, o novo presidente, quis promover uma mudança radical e surpreendeu: negociou o ídolo, vendido para o Boca Juniors por 600 mil cruzeiros. A decisão não foi fácil. Heleno era amado pela torcida, e poucos botafoguenses eram tão apaixonados quanto o próprio Carlito. Mas o relatório feito pelo técnico Ondino Viera, de saída, era contundente: com Heleno no clube, o Botafogo não seria campeão.

Os torcedores não gostaram nada da decisão, e menos satisfeitos ficaram quando Pirillo foi contratado para o seu lugar – o atacante já tinha 32 anos e era muito identificado com o Flamengo, onde jogava desde o começo da década. E quando Zezé Moreira, ex-jogador alvinegro e até então apenas preparador físico do clube, foi efetivado como treinador em substituição a Ondino Viera, a desconfiança aumentou.

A estreia do Botafogo no campeonato, em 11 de julho, pareceu confirmar as expectativas negativas da torcida: derrota por 4 a 0 para o São Cristóvão, em casa. Os torcedores, indignados, pediam mais um gol do rival e clamavam pelo nome de Heleno, testemunha da vergonha do camarote. Mas se a maioria dos botafoguenses já deu a temporada por perdida naquela partida, Carlito Rocha não se abateu: prometeu que o Glorioso não voltaria a perder, e levaria a taça.

A conquista da confiança foi gradual. No segundo jogo, uma boa vitória sobre o Canto do Rio por 4 a 2. Na terceira partida uma goleada de 6 a 0 sobre o Madureira, e os botafoguenses começavam a acreditar no time. E foi no jogo preliminar daquele dia, disputado pelos aspirantes, surgiu o que seria uma das "estrelas" do título. Após a vitória botafoguense, por 10 a 2, um vira-lata invadiu o campo, como se comemorasse o feito. Era Biriba, animal de estimação do eterno zagueiro reserva Macaé. Encantado pelo bicho, que além de tudo era preto e branco, Carlito Rocha decidiu adotá-lo como talismã – uma das muitas excentricidades do presidente na temporada.

O cachorrinho “deu” sorte ao time principal logo no jogo seguinte: o Botafogo goleou o Fluminense por 5 a 2, e passou a ser considerado candidato ao título. E jogo após jogo o Glorioso entrava em campo com Biriba liderando a fila, como se fosse um jogador, e em todos eles saía vitorioso. Se no início todos achavam o ritual ridículo, logo os rivais mostraram-se preocupados com o talismã – ainda mais quando Macaé, seguindo ordens de Carlito, passou a soltar o cão em campo sempre que o Botafogo estava atrás no placar. Incrivelmente a loucura dava resultado, e os alvinegros conseguiam a virada.

O America, antes da derrota por 1 a 0 na penúltima rodada, foi o primeiro a enviar um protesto à Federação contra Biriba. E o Vasco, líder da competição em todas as rodadas e adversário do Alvinegro no último jogo do primeiro turno, foi além: vetou o ingresso do cãozinho em São Januário. Mas Carlito Rocha peitou a proibição e entrou no estádio com Biriba nos braços. O Glorioso venceu mais uma, por 2 a 1, e passou o Cruzmaltino na tabela por um ponto, assumindo a liderança na última rodada do turno.

A perseguição no segundo turno foi árdua. O Botafogo tropeçou na quarta rodada, ao empatar com o Fluminense, e a liderança do campeonato passou a ser dividida com os vascaínos. Os dois times venceram todas as demais partidas, e o confronto entre ambos, no último jogo da competição, tornou-se uma final. Quem vencesse seria o campeão carioca, e em caso de empate o título seria decidido em um jogo-extra.


Carlito Rocha em foto famosa com Biriba


O JOGO

O estádio de General Severiano estava lotadíssimo, e a renda bateu recorde de então: 570 mil cruzeiros. Botafoguenses e vascaínos confiavam na conquista do título – os primeiros com a fé inabalável no destino, que parecia do lado do Glorioso, e os segundos na qualidade do “Expresso da Vitória”, simplesmente o maior esquadrão formado pelo Cruzmaltino em toda a história e recentemente o primeiro Campeão Sul-Americano de Clubes.

Mas as esperanças vascaínas se esvaíram logo no primeiro minuto. Pirillo, que fazia um excelente campeonato, tomou a bola de Danilo na intermediária, avançou pela esquerda e tocou para Braguinha, que driblou Augusto e entrou na área. O goleiro Barbosa foi para cima, tentando abafar um possível chute, mas seu adversário foi mais rápido e cruzou para Paraguaio, livre, empurrar de testa para as redes: 1 a 0 para o Glorioso. O Botafogo nunca mais abandonou a dianteira no placar, ou mesmo perdeu o controle do jogo. A taça estava na mão.

O Vasco ainda não tinha conseguido criar uma oportunidade clara de gol quando o Alvinegro ampliou, já aos 40 minutos, por intermédio de Braguinha. O atacante conseguiu ficar com a bola após confusão na pequena área, e chutou para as redes: 2 a 0 para o time da casa, e a torcida já comemorava o título.

O segundo tempo trouxe um pouco de preocupação, quando o zagueiro Gérson se chocou com Dimas e levou a pior, no primeiro minuto. Desorientado, o atleta acordou perguntando “que jogo era aquele” e não teve condições de voltar. Sem substituições, o Botafogo ficou mesmo com dez em campo, mas não fez tanta diferença. Aos quatro minutos Braguinha viu uma brecha entre Wilson e Eli e enfiou a bola para Octávio, que ganhou dos rivais na corrida, entrou na área e escolheu um canto para marcar: 3 a 0, selando a vitória.

Os vascaínos só conseguiram descontar através de um gol contra de Ávila, que tentou cortar um cruzamento pouco perigoso e acabou cabeceando para o próprio patrimônio. E não passou disso. Seguro na defesa, o Bota administrou o jogo até o apito final.

A festa alvinegra pelo título foi intensa, na medida do que foi a campanha memorável. Os jogadores, entre eles um jovem Nílton Santos em seu primeiro ano profissional, cobriram Carlito Rocha, que de olhos marejados abraçava e beijava Biriba sem parar – o dirigente até mesmo passou mal de emoção, e teve que ser atendido. Macaé, eufórico, havia acertado o placar em entrevista à rádio, e gritava para quem quisesse ouvir: “Eu disse! Eu disse!”. E a torcida, à beira da loucura, chegou a arrombar o vestiário e roubar as camisas dos jogadores.

Do lado vascaíno, conformidade com o placar – os atletas admitiam o mau desempenho, e parabenizavam o campeão. Mas a serenidade durou pouco, pois dentro de alguns dias surgiriam as famosas justificativas conspiratórias para a derrota, nenhuma registrada pela imprensa.

Biriba, o mascote de carne e osso do Botafogo, seguiu entrando em campo com a equipe até 1950, quando os clássicos passaram a ser disputados no Maracanã. O cão chegou a “participar” de alguns jogos no estádio, mas o futebol já era sério demais para certas excentricidades. Biriba seguiu querido, visitava o clube com frequência, e ao contrário do que alguns imaginam não morreu abandonado. Com problemas cardiácos, faleceu aos 12 anos de idade, no apartamento de seu dono Macaé, a 10 de agosto de 1958. Até hoje o animal é um dos símbolos do clube, e motivo do apelido “cachorrada” dado pelos rivais.

== Ficha técnica ==

Domingo, 12 de dezembro de 1948
Botafogo 3 x 1 Vasco da Gama – Local: Estádio de General Severiano
Campeonato Carioca – 2º Turno

Botafogo: Osvaldo Baliza, Gérson e Nílton Santos; Rubinho, Ávila e Juvenal; Paraguaio, Geninho, Pirillo, Octávio e Braguinha. Técnico: Zezé Moreira.

Vasco da Gama: Barbosa, Augusto e Wilson; Ely, Danilo e Jorge; Friaça, Ademir Menezes, Dimas, Ipojucan e Chico. Técnico: Flávio Costa.

Árbitro: Mário Gonçalves Vianna (DF).
Gols: Paraguaio aos 1/1ºT e Braguinha aos 40/1ºT; Octávio aos 4/2ºT e Ávila (contra) aos 18/2ºT.

Público: 18.321 pagantes, aproximadamente 20.000 presentes